Nesses tempos de quarentena e isolamento social, algumas atividades são consideradas essenciais e podem continuar funcionando, total ou parcialmente. A Odontologia, como uma atividade de Saúde, pode ser realizada em instituições públicas ou privadas, porém apenas para atendimento odontológico de emergência e de urgência.
Há uma diferença principal entre esses dois tipos de atendimento odontológico. Uma emergência apresenta ameaça imediata para o bem-estar do paciente, e a vida dele pode estar está em risco. Já a urgência é uma ameaça em um futuro próximo, que pode vir a se tornar uma emergência, se não for solucionada. Na emergência, o aparecimento é súbito e imprevisto, exigindo solução imediata, e na urgência, não. Porém, a solução deve ser em curto prazo. Como a boca é a porta de entrada para vírus e bactérias, a amplitude dos nossos atendimentos de urgência e emergência acaba se estendendo bastante, em um momento em que esta pandemia seleciona grupos de risco que são bastante frequentes em nossas clínicas.
Dito isso, qual deve ser a nossa postura frente aos nossos pacientes? Bem, se levarmos em consideração as cardiopatias, o diabetes e o fumo, que já estão sendo considerados como fatores de risco para o coronavírus, a nossa necessidade de atendimento odontológico já vai aumentando substancialmente. Sem falar em várias outras doenças de ordem geral que podem ser agravadas caso a condição bucal não esteja estável. Assim, muitos de nossos atendimentos e tratamentos têm fundamental importância nesse momento que estamos vivendo.
A literatura atual elenca uma série de doenças sistêmicas que podem ter relação direta com as periodontites, e vice-versa. A maioria dos autores concorda que existem algumas com potencial mais alto nesta relação, e que a via de mão dupla pode ocorrer em algumas dessas enfermidades. Ou seja, a doença periodontal pode ser um fator facilitador ou porta de entrada de algumas dessas doenças. Ora, se sabemos muito bem que os pacientes que não possuem nenhuma comorbidade reagem melhor ao ataque do Covid-19, nada mais justo do que evitar que pacientes saudáveis venham a desenvolver mais algum tipo de doença, principalmente as cardiopatias, o diabetes e o fumo.
As cardiopatias parecem ter uma interação substancial com as periodontites, pois tem sido observado que pacientes diagnosticados com infecções periodontais graves apresentam maior incidência de manifestações clínicas de doença arterial coronária ou de acidente vascular cerebral. Embora as evidências sejam inconclusivas, parece haver uma tendência de que, em algum momento, uma doença periodontal possa aumentar o risco de problemas cardiovasculares, especialmente em pacientes mais idosos, com histórico familiar dessas doenças.
Quando pensamos no diabetes, temos que levar em consideração que a Organização Mundial de Saúde (OMS) estimou, em 2014, que 8% da população mundial sofre de algum tipo de diabetes. A OMS também acredita que esta estimativa pode estar subestimada, uma vez que milhares de pessoas podem ter a doença, mas nunca foram diagnosticadas. Desta forma, estes números continuam crescendo assustadoramente. Portanto, o DM representa um enorme desafio à Saúde pública e é de longe a principal doença sistêmica que afeta a periodontite em termos de extensão da população afetada. Além disso, existem evidências acumuladas de que a própria inflamação periodontal pode contribuir para o aparecimento e persistência da hiperglicemia, na medida em que a inflamação está associada a um controle glicêmico mais fraco em indivíduos com DM.
Quando levamos em consideração o fumo, também devemos relembrar que o tabagismo tem um efeito adverso importante nos tecidos periodontais de suporte, aumentando o risco de periodontite de duas a sete vezes. Não há características fenotípicas exclusivas da periodontite em fumantes. Assim, a periodontite associada ao tabagismo não é uma doença distinta. No entanto, o tabagismo é um importante fator modificador da periodontite e deve ser incluído no diagnóstico clínico da periodontite como um importante descritor. De acordo com a nova classificação da periodontite, o nível atual de uso de tabaco influencia no grau que será classificada a periodontite.
A separação inadequada das diversas áreas da Saúde acaba por prejudicar sobremaneira a saúde geral dos pacientes. Realizar atendimentos individualizados e fechados em especialidades específicas prejudica o diagnóstico e o tratamento correto de enfermidades que se inter-relacionam. Há a necessidade de que as autoridades em Saúde pública comecem a valorizar mais a saúde bucal e seus reflexos na saúde sistêmica dos pacientes. Foi preciso uma pandemia mundial para que muitos acreditassem nisso, e agora parece que estão sendo elaboradas estratégias mais eficientes, de modo a conscientizar os profissionais e pacientes sobre o impacto positivo da saúde bucal no prognóstico de várias doenças.
Deste modo, é indiscutível que nós, cirurgiões-dentistas, temos uma grande responsabilidade social no nosso atendimento odontológico nessa época de coronavírus. Não podemos deixar que nossos pacientes, principalmente os mais idosos e os dos grupos de risco ao Covid-19, desenvolvam qualquer infecção que venha a fragilizar ainda mais a saúde deles, deixando-os mais suscetíveis aos efeitos do vírus. Nossa responsabilidade é reduzir os riscos destes e de todos os pacientes. Portanto, faça valer os seus direitos de prestar atendimento odontológico. Não se esconda dentro de casa deixando que o medo e decisões atabalhoadas de algumas autoridades tomem conta do seu coração. Somos peças fundamentais de promoção de Saúde nesse momento crítico que estamos passando, e devemos entrar de corpo e alma nessa guerra!
Sugestões de leitura
- Papapanou PN, Sanz M, et al. Periodontitis: consensus report of workgroup 2 of the 2017 World Workshop on the Classification of periodontal and peri‐implant diseases and conditions. J Clin Periodontol 2018;45(Suppl 20):S162-S170.
- Tonetti MS, Greenwell H, Kornman KS. Staging and grading of peri‐odontitis: framework and proposal of a new classification and case definition. J Clin Periodontol 2018;45(Suppl 20):S149-S161.
“Não se aparte da tua boca o livro desta lei; antes medita nele dia e noite, para que tenhas cuidado de fazer conforme a tudo quanto nele está escrito; porque então farás prosperar o teu caminho, e serás bem-sucedido. Não te ordenei que sejas forte e corajoso? Esforça-te, e tem bom ânimo; não tenhas medo, nem te acovardes; porque o Senhor teu Deus é contigo, por onde quer que andares.” (Josué 1:8,9)
Marco Bianchini
Professor associado II do departamento de Odontologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); autor dos livros “O Passo a Passo Cirúrgico na Implantodontia” e “Diagnóstico e Tratamento das Alterações Peri-Implantares”.
Contato: bian07@yahoo.com.br | Facebook: bianchiniodontologia | Instagram: @bianchini_odontologia