Muito além dos dentes: a difícil tarefa de atender pessoas próximas

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Não existe um dentista no mundo que já não tenha atendido uma pessoa próxima. (Imagem: Depositphotos)
A intimidade com o paciente prejudica o diagnóstico? Marco Bianchini debate as dificuldades dos dentistas ao atender pessoas próximas.

Na rotina clínica de quem faz consultório diariamente, não é raro aparecer uma situação bastante inusitada: ter que atender pessoas próximas. Pode ser um amigo, irmão, padrinho, pai, mãe, avô, avó, tio, tia etc. Não existe um dentista no mundo que já não tenha atendido uma pessoa próxima e também não existe um dentista no mundo que já não tenha tido algum tipo de problema com estes atendimentos. Os problemas que ocorrem vão desde aspectos financeiros, passando pelo planejamento e culminando com os resultados.

Após 30 anos de formado, eu achava que já estava vacinado para enfrentar estas situações. Porém, a cada novo dia no consultório eu percebo que o aprendizado é contínuo e as reações dos pacientes, sejam eles próximos a nós ou não, são as mais variadas possíveis. O comportamento do ser humano geralmente é bastante previsível, seja de quem está procurando atendimento, ou daquele que vai prestar o serviço. Entretanto, as expectativas que cada um destes indivíduos gera sobre os outros acabam por desencadear os conflitos.

O que acontece é que as pessoas próximas nos procuram pela intimidade que têm conosco. Sentem-se mais confortáveis e à vontade por estarem fazendo um tratamento odontológico com alguém que já possuem um relacionamento fora do consultório. Por outro lado, nós que estamos do outro lado do balcão, muitas vezes, carregamos esta intimidade de uma maneira equivocada, deixando de avaliar o caso profissionalmente e colocando o coração na frente da razão. Esta atitude é a receita ideal para o fracasso, não só do tratamento, como também do relacionamento que já existia com esta pessoa próxima.

Na Implantodontia e na Periodontia, essas situações aparecem mais naqueles casos de dentes que têm prognóstico duvidoso. É aquela tradicional dúvida: extraio ou não? Coloco implante ou invisto mais um pouco no tratamento periodontal deste dente? Quem faz reabilitação também se depara com casos semelhantes. É só lembrar daqueles dentes que vamos preparar e ainda são vitais, ou daqueles com cáries médias já próximas da polpa. Faço a endodontia antes ou não? Tento preservar a vitalidade ou já encaminho direto para a Endodontia?

Esse ano me deparei mais uma vez com uma situação dessas. Um paciente próximo compareceu na minha clínica com uma lesão cariosa subgengival profunda, já com invasão do espaço biológico. O caso era para um aumento de coroa clínica ou até mesmo para um implante imediato. Para piorar a situação, o dente vizinho tinha uma cárie relativamente profunda que, na minha visão, necessitava de uma Endodontia prévia. Visando ser o mais conservador possível, fiz o encaminhamento desse dente vizinho para o endodontista e planejei o aumento de coroa clínica da área, para moldarmos no transcirúrgico os dois dentes e confeccionarmos duas restaurações indiretas tipo onlay.

Na minha visão, estava tudo certo. Só que o meu paciente próximo não pensou assim e acabou procurando outro profissional, que disse que o dente que encaminhamos para Endodontia não precisava de tratamento de canal e que a restauração do outro dente poderia ser feita de maneira direta e sem o aumento de coroa clínica, bastava afastar um pouco a gengiva. Eu tive que ouvir tudo isso via áudios de WhastApp e engolir a decisão do meu paciente próximo, além do diagnóstico do colega.

Dentro do que eu conheço de Odontologia, tenho certeza de que logo esse meu paciente próximo vai acabar me procurando novamente. Provavelmente ele vai ter uma pulpite irreversível no dente que indicamos à Endodontia, além de uma grande infiltração na restauração subgengival, que foi feita sem o devido aumento de coroa clínica. No entanto, o que mais me intriga é o motivo de eu não ter convencido este meu paciente próximo a aceitar o meu plano de tratamento. Em algum momento eu devo ter falhado e passado algum tipo de insegurança quanto ao meu diagnóstico, caso contrário esse meu paciente jamais teria procurado outro profissional.

Casos como esse são rotina em nossos consultórios. Diariamente, temos que tomar decisões deste tipo. Contudo, quando o paciente é próximo a nós, nossa capacidade de decisão fica um pouco prejudicada e acabamos dando aquela tradicional “rateada”. Ficamos literalmente em cima do muro, muitas vezes por precaução, não querendo errar com um paciente tão querido. Outras vezes, superestimamos os resultados, acreditando ser possível obter respostas que não conseguimos na maioria dos nossos casos. Definitivamente, a intimidade com os pacientes acaba prejudicando o nosso diagnóstico correto e o posterior tratamento.

“Se alguém disser: ‘Amo a Deus’, mas odiar o seu irmão, esse é mentiroso. Pois quem não ama o seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê. E o mandamento que dele temos é este: quem ama a Deus, que ame também o seu irmão.” (1 João 4:20,21)

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